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Dvar Torah 4ª Parashat: Vayerá (5786)

 

Dvar Torah דבר תורה
(Palavra de Torá)

4ª Parashat Vayerá (02 de nov. - 08 de nov.)

Escrito por: Mateus Corrêa 

וירא (E mostrou-se)

Gênesis/ Bereshit 18:1-22:24

" Depois apareceu-lhe o Senhor nos carvalhais de Manre, estando ele assentado à porta da tenda no calor do dia

1ª Aliyah (Domingo): Bereshit/ Gênesis 18:1-14

2ª Aliyah (Segunda-feira): Bereshit/Gênesis 18:15-33

3ª Aliyah (Terça-feira): Bereshit/Gênesis 19:1-20

4ªAliyah (Quarta-feira): Bereshit/Gênesis 19:21-38

5ª Aliyah (Quinta-feira): Bereshit/Gênesis 20:1-18

6ª Aliyah (Sexta-feira): Bereshit/Gênesis 21:1-21

7ª Aliyah (Sábado): Bereshit/Gênesis 21:22-22:24


Haftarah (Os Profetas)

2Reis 4:1-37 

 

Brit Chadashá (Novo Testamento)

Tiago 2:21-24

João 8:56

Hebreus 11:17-19

Comentários:

 ב''ה

Vayerá: Entre a Hospitalidade e o Sacrifício

Parashat 

🌿 A Visita dos Três Anjos a Avraham (Bereshit 18:1–15)

A cena se abre de maneira simples e, ao mesmo tempo, grandiosa:

“E apareceu-lhe o Eterno nos carvalhais de Mamré, estando ele assentado à porta da tenda, no calor do dia.” (Bereshit 18:1)

Avraham está sentado à entrada de sua tenda, atento e receptivo, mesmo sob o sol escaldante do deserto. Era o terceiro dia após sua circuncisão, momento em que, segundo a tradição judaica, a dor é mais intensa. Apesar disso, ele não se fecha em si mesmo. Ao contrário, mantém-se vigilante, disposto a servir.

O texto começa com as palavras “Vayerá Elav Hashem”= “E apareceu a ele o Eterno”, indicando que essa manifestação divina se dá através da chegada de três visitantes misteriosos, anjos em forma de homens.


🏕️ A Hospitalidade de Avraham

Ao avistar os três homens, Avraham corre ao encontro deles. Ele não espera, não hesita, não mede esforços. Apressa-se, curva-se até o chão e diz:

“Senhor meu, se agora achei graça aos teus olhos, rogo-te que não passes de teu servo.” (v. 3)

Essa atitude revela a essência da hospitalidade bíblica (hachnasat orchim), receber o outro como se recebesse o próprio D’us. Avraham oferece água, sombra e alimento, pedindo humildemente que os visitantes aceitem sua oferta. Ele mesmo participa da preparação: manda Sara amassar farinha e fazer pães, escolhe um bezerro tenro, entrega-o a um servo e serve pessoalmente a refeição.

Essa pressa em servir, esse zelo nos detalhes e a alegria em fazer o bem são marcas do caráter de Avraham. Ele não serve por obrigação, mas por amor. Sua tenda aberta em quatro direções simboliza um coração aberto a todos os lados, a todos os povos.


👼 A Identidade dos Visitantes

A tradição ensina que os três homens eram anjos, cada um com uma missão específica:

  1. Miguel (Mika’el)= trazer a boa-nova de que Sara teria um filho;

  2. Rafael= curar Avraham da dor da circuncisão;

  3. Gabriel= anunciar a destruição de Sodoma e Gomorra.

Essas três missões revelam o caráter múltiplo da presença divina: cura, promessa e juízo, três manifestações diferentes, mas todas vindas do mesmo Eterno.

Contudo, dentro de uma leitura messiânica e adventista, o arcanjo Miguel é entendido como uma teofania, ou seja, uma manifestação visível do próprio D’us, antes da encarnação de Yeshua Hamashiach.

O nome מִיכָאֵל (Mika’el) significa:

“Quem é como D’us?”

Essa expressão não é apenas um título, mas uma afirmação da própria natureza divina desse Ser. Em toda a Escritura, Miguel aparece como o Príncipe do povo de Israel (Daniel 10:21) e o Líder dos exércitos celestiais (Apocalipse 12:7), papéis que ultrapassam a função de um anjo criado. Por isso, muitos intérpretes cristãos e adventistas o reconhecem como o próprio Messias pré-encarnado, Yeshua, atuando antes de se fazer carne.

Essa compreensão ganha força neste relato, porque um dos três visitantes fala com autoridade divina, prometendo:

“Certamente voltarei a ti, e Sara tua mulher terá um filho.” (v. 10)

O narrador logo acrescenta:

“Era o Eterno que falava com Avraham.” (v. 13)

Ou seja, um dos três não era apenas mensageiro, era o próprio Eterno.

 Os outros dois seguiram para Sodoma, enquanto Avraham:

 “ficou ainda em pé diante do Eterno” (v. 22). 

Assim, podemos entender que Miguel, o primeiro entre os três, era a manifestação do próprio D’us, o Verbo Divino, o Messias antes da encarnação, aquele que visita Avraham para reafirmar a aliança e confirmar a promessa.

Essa leitura está em harmonia com outros episódios bíblicos, nos quais o Anjo do Senhor (Malach YHWH) fala como o próprio D’us e recebe adoração (cf. Êxodo 3:2–6; Juízes 6:11–24; 13:18–22).


👶 A Promessa de um Filho

Durante a refeição, os anjos perguntam:

“Onde está Sara, tua mulher?”
E Avraham responde: “Eis que está na tenda.” (v. 9)

Então vem a promessa:

“Certamente tornarei a ti, e Sara tua mulher terá um filho.” (v. 10)

Sara, ouvindo atrás da cortina, ri em seu íntimo. Não um riso de escárnio, mas de incredulidade e espanto. Ela pensa: “Depois de envelhecida, e tendo o meu senhor já idade avançada, terei ainda prazer?” (v. 12)

O Eterno, porém, responde:

“Por que se riu Sara? Haveria coisa demasiadamente difícil para o Eterno?” (v. 13–14)

Esse diálogo mostra que D’us ouve até o riso silencioso do coração. Ele confronta a dúvida, não com ira, mas com uma pergunta que ecoa em toda a Escritura:

“Haveria algo impossível para o Eterno?”

Sara nega ter rido, talvez por medo, mas o texto termina com ternura e ironia: o filho que nasceria seria chamado Yitzhak (Isaac), “ele rirá”. O riso de incredulidade se tornaria riso de fé e alegria


⚖️ O Clamor de Sodoma e Gomorra (Bereshit 18:16–33)

Após a refeição na tenda de Avraham e o anúncio do nascimento de Yitzhak, a narrativa muda de tom. O ambiente de alegria e promessa dá lugar a uma atmosfera de gravidade e juízo. Os três visitantes se levantam e olham em direção a Sodoma, e Avraham os acompanha até o caminho. É nesse momento que o texto revela um dos diálogos mais solenes e misteriosos de toda a Torá, o Eterno conversando com Avraham sobre o destino de uma cidade inteira.


🌆 A decisão divina revelada

“Disse o Eterno: Ocultarei de Avraham o que estou para fazer?” (v. 17)

Essa pergunta divina é reveladora. D’us, o Criador do universo, decide partilhar Seus planos com um ser humano. Avraham não é um profeta passivo, mas um amigo de D’us (cf. Isaías 41:8), alguém com quem o Eterno dialoga de igual para igual, dentro de uma relação de confiança.

O texto continua:

“O clamor de Sodoma e Gomorra é grande, e o seu pecado é muito grave.” (v. 20)

A palavra hebraica usada para “clamor”, צְעָקָה (tse’aqá), é intensa. Ela carrega a ideia de um grito de injustiça, um pedido de socorro que sobe ao céu. Esse clamor representa as vítimas da opressão, a violência, a degradação moral e a completa inversão dos valores humanos nas cidades da planície.
A corrupção de Sodoma não era apenas sexual, mas sobretudo social e espiritual: orgulho, crueldade, abuso de poder e total indiferença diante do sofrimento alheio (Ezequiel 16:49).

O Eterno, em Sua justiça, declara que descerá para ver se o clamor é conforme o que chegou aos Seus ouvidos. Essa linguagem é antropomórfica, não porque D’us precise investigar, mas porque Ele age com justiça perfeita, mostrando que julga com conhecimento, não por aparência.


🕊️ Avraham, o intercessor

Quando os dois anjos seguem para Sodoma, Avraham permanece diante do Eterno (v. 22). Aqui o texto hebraico faz uma inversão deliberada: originalmente, o homem ficaria diante de D’us; mas a Torá diz que “o Eterno ficou diante de Avraham”, expressão que enfatiza a humildade divina em dialogar com o homem.

Então começa uma das conversas mais sublimes da Bíblia:

“Destruirás o justo com o ímpio?” (v. 23)

Avraham se torna intercessor, não apenas patriarca. Ele não defende Sodoma porque a cidade mereça perdão, mas porque conhece a misericórdia divina. Ele apela à justiça compassiva do Eterno, perguntando se, por amor a cinquenta justos, a cidade seria poupada.

D’us responde com ternura e paciência. E Avraham continua, 45, 40, 30, 20, até chegar a 10 justos.

“Não a destruirei por amor aos dez.” (v. 32)

Essa “negociação” não é insolência, mas fé em ação. Avraham demonstra ousadia santa, uma confiança tão profunda em D’us que o leva a argumentar com Ele em favor da vida. Ele entende que a justiça divina nunca se separa da misericórdia.

Mas também há uma lição trágica: nem mesmo dez justos seriam encontrados em Sodoma. O mal havia se tornado estrutural, irreversível. O diálogo termina com as palavras:

“E o Eterno foi-se, quando acabou de falar com Avraham; e Avraham voltou ao seu lugar.” (v. 33)


🔥 Justiça, Misericórdia e Intercessão

O episódio do clamor de Sodoma revela um equilíbrio perfeito entre misericórdia e juízo, um equilíbrio que só pode existir no caráter do próprio D’us.

  • Misericórdia, porque Ele escuta, revela, adia e busca razões para poupar.

  • Justiça, porque não ignora o clamor dos oprimidos nem tolera a perversão que destrói o humano.

Avraham, como intercessor, se torna figura profética do Messias: ele se coloca entre o céu e a terra, entre o pecado e o juízo, intercedendo pelos que estão condenados. Essa é a mesma postura de Yeshua, o intercessor eterno, que roga por nós diante do Pai (Hebreus 7:25).


👑 A presença messiânica nesse diálogo

Na leitura messiânica, quem fala com Avraham neste diálogo é a mesma presença divina que esteve antes com ele na tenda, Miguel, a manifestação pré-encarnada do Messias.
É Yeshua quem revela o juízo vindouro e, ao mesmo tempo, acolhe a intercessão do patriarca. A cena antecipa o papel redentor do próprio Cristo: mediador, intercessor e juiz justo.

Em outras palavras, o mesmo que trouxe a promessa de vida a Sara agora fala do juízo sobre o pecado, mostrando que a graça e a justiça sempre caminham juntas na economia divina. O Messias é, ao mesmo tempo, anunciador de salvação e executor do juízo, conforme Apocalipse 19.


🔥 O Juízo Que Caiu do Céu

“Então o Eterno fez chover sobre Sodoma e sobre Gomorra enxofre e fogo da parte do Eterno, desde os céus.” (Bereshit 19:24)

O texto hebraico usa a expressão מֵאֵת יְהוָה מִן־הַשָּׁמָיִם  “da parte do Eterno, desde os céus”, uma repetição intencional do Nome divino, indicando que o juízo não é mero fenômeno natural, mas um ato deliberado de justiça celestial.
A destruição de Sodoma e Gomorra não é fruto da ira cega, mas do juízo consciente de D’us contra uma civilização que havia rejeitado toda bondade.

As cidades da planície, férteis e prósperas, tornaram-se símbolo da corrupção que nasce da abundância sem compaixão.
O fogo que cai do céu é a resposta divina ao clamor da injustiça, o mesmo “tse’aqá” (צְעָקָה) que havia subido antes ao trono de D’us (18:20).
Agora, o grito dos inocentes se transforma em fogo purificador.


🏃‍♂️ A Fuga de Ló: Misericórdia em Meio ao Julgamento

“E, como se demorasse, os homens pegaram-lhe pela mão, e pela mão de sua mulher e de suas duas filhas, sendo o Eterno misericordioso com ele, e o tiraram, e o puseram fora da cidade.” (v. 16)

O verbo hebraico וַיַּחֲזִיקוּ (vayahazikú) “agarraram”, transmite força e urgência.
Ló hesita, vacila, demora-se. Mesmo depois do aviso, seu coração parece preso ao conforto de Sodoma.
Mas o texto enfatiza: “o Eterno teve misericórdia dele”.
A salvação de Ló não é mérito, mas graça, um eco do amor de D’us que poupa o justo por causa da aliança feita com Avraham.

Os anjos literalmente o arrancam do meio da destruição. Assim é a misericórdia divina: quando o ser humano não consegue correr, o Eterno o toma pela mão.


🧂 A Mulher de Ló: O Olhar que Prendeu a Alma

“E a mulher de Ló olhou para trás e transformou-se numa estátua de sal.” (v. 26)

O verbo hebraico usado para “olhou” נָבַט (navat), implica olhar com intenção, não um simples vislumbre. Ela não apenas se virou; ela desejou aquilo que deixava.
O olhar revela apego. Enquanto seus pés corriam para a salvação, o coração permanecia em Sodoma.

Transformar-se em sal é poético e trágico: o sal conserva, mas também esteriliza.
Ela se torna símbolo da alma que não consegue desprender-se do pecado, ficando petrificada entre o passado condenado e o futuro que não alcançou.
Yeshua retoma essa imagem quando adverte:

“Lembrai-vos da mulher de Ló.” (Lucas 17:32)

Quem olha para trás, saudoso do mundo que D’us está destruindo, não pode avançar para o Reino.


🔥 O Fogo do Juízo e o Clamor da Justiça

“E olhou Avraham para a direção de Sodoma e Gomorra, e eis que a fumaça da terra subia como a fumaça de uma fornalha.” (v. 28)

Avraham contempla de longe o resultado daquilo que pedira para ser poupado.
Não há alegria no juízo, apenas silêncio e tristeza.
O justo não se alegra com a destruição dos ímpios; ele chora a perda do arrependimento que nunca veio.

O fogo que caiu do céu tem duplo significado: punição e purificação.
Ele destrói o mal, mas também marca o limite da paciência divina.
É a lembrança de que o Eterno é tardio em irar-se, mas firme em justiça, e que quando a maldade se torna estrutural, o juízo é inevitável.


🌩️ O Sentido Messiânico do Juízo

Na leitura messiânica, o juízo de Sodoma é também um prenúncio do Dia do Senhor, quando o mesmo Anjo do Eterno, identificado pelos antigos mestres como Miguel, a manifestação do próprio Messias, voltará para executar justiça.
É o mesmo que visitou Avraham, prometeu a vida a Sara e agora traz o juízo sobre o pecado.

O mesmo Yeshua que intercede como cordeiro também voltará como Leão, trazendo o fogo purificador do julgamento (cf. Apocalipse 19:11-16).
Assim como em Sodoma, Ele separará os que amam a justiça dos que rejeitam o arrependimento.


🍷 A Caverna e o Vinho: O Recomeço Corrompido

“E subiu Ló de Zoar e habitou no monte, ele e suas duas filhas com ele; porque temia habitar em Zoar; e habitou numa caverna, ele e suas duas filhas.” (Bereshit 19:30)

Depois do fogo, silêncio.
Aquele que havia vivido entre os portões de Sodoma agora se esconde em uma caverna, símbolo da solidão e da vergonha. O homem que um dia escolhera as campinas férteis do Jordão (13:10) termina enclausurado entre rochas, sem cidade, sem esposa, sem futuro.
O contraste é intencional: o mesmo Ló que buscou o conforto da planície agora colhe o isolamento do juízo.

A expressão “temia habitar em Zoar” revela um coração ainda desconfiado, dominado pelo medo. A fé de Avraham gera altares; o medo de Ló gera cavernas.


💔 O Engano das Filhas
“E disseram a primogênita à menor: nosso pai é velho, e não há homem na terra que venha a nós, segundo o costume de toda a terra.” (v. 31)

As filhas de Ló acreditam que toda a humanidade havia sido destruída, talvez interpretando o fogo sobre Sodoma como um novo dilúvio. A intenção inicial parece “salvar” a descendência do pai, mas o meio escolhido é torpe.
Elas fazem Ló beber vinho, noite após noite, e deitam-se com ele sem que ele perceba.

A Torá usa duas vezes a expressão:

“E não soube quando se deitou nem quando se levantou.” (v. 33, 35)

O hebraico לֹא יָדַע (lo yadah) “não soube”, é uma ironia trágica: o mesmo verbo yada‘, “conhecer”, é usado para intimidade. Ou seja, Ló “não conhece” aquilo que está “conhecendo”.
É a imagem perfeita da degradação: o vinho turva a consciência, e o homem que um dia ofereceu hospitalidade aos anjos agora se torna símbolo da confusão moral.


⚖️ O Nascimento de Duas Nações
“E concebeu a primogênita um filho, e chamou seu nome Moav; ele é o pai dos moavitas até hoje. E a menor também concebeu um filho, e chamou seu nome Ben-Ammi; ele é o pai dos filhos de Amom até hoje.” (vv. 37–38)

Os nomes carregam ironia e revelação.
Moav (מוֹאָב) significa literalmente “do pai”, uma confissão em forma de nome.
Ben-Ammi (בֶּן־עַמִּי) significa “filho do meu povo”, uma tentativa de suavizar o escândalo.
Mas ambos nascem de um ato marcado pela falta de fé e pela distorção dos valores.

Essas duas nações, Moabe e Amom, se tornarão inimigas constantes de Israel, praticando idolatria e conduzindo o povo de D’us à imoralidade (cf. Números 25:1–3; Juízes 11:13; 1 Reis 11:7).
O fruto do medo e da embriaguez espiritual sempre gera corrupção no futuro.


🕯️ A Moral do Abismo: O Efeito de Sodoma Mesmo Fora Dela

Ló escapou de Sodoma, mas Sodoma não escapou dele.
Embora tenha deixado a cidade, a mentalidade sodomita ainda vivia em sua casa.
A degradação das filhas mostra o quanto o ambiente molda os valores: cresceram cercadas de perversão, e quando chegou a hora da decisão, reproduziram o mesmo padrão de confusão moral.

Aqui a Torá nos ensina que sair do lugar do pecado não é o mesmo que deixar o pecado. É possível abandonar a cidade e ainda carregar seus valores dentro da alma.

A caverna, nesse contexto, representa o esconderijo da vergonha humana, um isolamento onde o pecado parece desaparecer, mas apenas muda de forma.


👑 A Redenção que Brota do Escândalo

E, no entanto, a misericórdia divina não termina nem mesmo nesse abismo.
Séculos mais tarde, de Moabe, nascerá uma mulher chamada Rute, que deixará sua terra e seus deuses para unir-se ao povo de Israel e dizer:

“O teu povo será o meu povo, e o teu D’us será o meu D’us.” (Rute 1:16)

Rute, a moabita, se tornará ancestral de Davi e do próprio Messias Yeshua (Mateus 1:5).
Assim, o Eterno transforma até a semente da vergonha em instrumento de redenção.
O sangue impuro de Moabe é purificado pela fé, mostrando que nenhum passado é tão corrompido que a graça não possa redimir.


🌒 O Eco de Sodoma nas Montanhas

“Subiu Ló de Tsoar e habitou nas montanhas, e com ele suas duas filhas; porque temia ficar em Tsoar.” (Bereshit 19:30)

O texto muda de cenário, mas não de tensão. O fogo cessou em Sodoma, porém as cinzas da corrupção ainda ardem na alma de Ló e de sua casa. O homem que foi poupado por causa da intercessão de Avraham agora vive isolado, num refúgio de medo, não de fé.
Aquele que escolhera as campinas férteis pela aparência, termina seus dias nas rochas estéreis das montanhas. Eis o preço das escolhas baseadas na visão e não na promessa.

🔥 As Filhas de Ló e a Herança de Sodoma

“Então a primogênita disse à menor: nosso pai é velho, e não há homem na terra que venha a nós segundo o costume de toda a terra.” (v. 31)

A frase é perturbadora. As filhas de Ló acreditam que o mundo acabou. A destruição de Sodoma parece, aos seus olhos, o fim de toda a humanidade. Essa percepção distorcida, fruto de uma mentalidade moldada pela imoralidade da cidade, as leva a um plano profano: embebedar o pai e deitar-se com ele.
O verbo hebraico usado para “embebedar” (וַתַּשְׁקֶיןָ, vattashkená) é o mesmo usado em outros contextos de sedução e engano, como o vinho que anestesia a consciência. Assim, o mesmo vinho que poderia simbolizar alegria e comunhão, aqui se torna instrumento de confusão e vergonha.

A narrativa descreve duas noites, duas repetições, dois filhos, e nenhum arrependimento. A Torá, com sobriedade e sem sensacionalismo, apenas mostra o resultado: da união ilícita nascem Moav (“do pai”) e Ben-Ami (“filho do meu povo”). Os nomes, dados pelas próprias mães, revelam a consciência do ato, uma ironia amarga que a Escritura não tenta suavizar.

💀 Duas Nações, Duas Heranças Corrompidas

Daquelas montanhas surgem os moabitas e os amonitas, povos que mais tarde se tornariam inimigos de Israel. Ambos herdaram não só o sangue, mas também o espírito de Sodoma: orgulho, idolatria e impureza (cf. Devarim/Deuteronômio 23:3–4).
A história de Ló e suas filhas é um eco do colapso moral das cidades destruídas. Sodoma foi queimada, mas Sodoma não morreu, ela ressurgiu na descendência do justo que escolheu viver perto demais do pecado.

✨ Luz na Escuridão: A Redenção Silenciosa

Mesmo assim, a misericórdia divina não deixa o caos ser a última palavra. Da terra de Moav surgirá Rute, a moabita fiel, que deixará seus deuses para servir ao D’us de Israel. Por meio dela, o sangue de Ló se mistura novamente ao de Avraham, não pela corrupção, mas pela graça.
Da vergonha nasce esperança, e da linhagem marcada pelo erro surge a linhagem messiânica de Davi e, finalmente, do próprio Yeshua HaMashiach.

Assim, o Eterno mostra que pode transformar as ruínas morais da humanidade em instrumentos de redenção. O vinho da vergonha é purificado no cálice da graça.

🏰 Avraham e Aviméleque: A Fé que Ainda Treme

“E partiu Avraham dali para a terra do sul, e habitou entre Cadesh e Shur, e peregrinou em Gerar.” (Bereshit 20:1)

Depois da fumaça que subiu de Sodoma, o texto muda de cenário, mas não de tema. O patriarca, que intercedera por ímpios e vira o juízo de D’us, agora enfrenta um teste mais sutil, o medo.
Avraham, o amigo do Altíssimo, ainda é homem. E o homem, mesmo tocado pela fé, ainda sente o frio do perigo.

Assim, ao chegar em Gerar, declara novamente que Sara é sua irmã. É o mesmo erro cometido no Egito (Bereshit 12), repetido agora sob outro sol. O patriarca, símbolo da fé inabalável, vacila, e esse vacilo é precisamente o que revela a verdade da fé: não é ausência de fraqueza, mas confiança apesar dela.

👑 O Sonho de um Rei

“Veio D’us a Abimeleque em sonho de noite, e disse-lhe: Eis que estás morto por causa da mulher que tomaste; porque ela tem marido.” (v. 3)

A cena é surpreendente: D’us fala a um rei gentio, não a um profeta hebreu. E fala em sonho, meio em que os pagãos acreditavam receber mensagens divinas. O Eterno se revela fora da tenda de Avraham, mostrando que Sua soberania não conhece fronteiras.
Abimeleque, diferente do faraó, argumenta com integridade: “Não me disse ele: é minha irmã? E ela também disse: é meu irmão?” (v. 5). O rei é inocente, e o próprio D’us reconhece sua inocência.

Essa inversão é poderosa: o pagão teme a D’us, enquanto o profeta engana por medo dos homens. A moral de Gerar é mais alta, por um instante, que a de Canaã. Assim, o texto expõe o contraste entre o ideal da fé e a realidade humana da falha.

🕊️ Graça que Restaura

D’us ordena que Abimeleque devolva Sara, pois Avraham é “profeta e orará por ti, e viverás” (v. 7). A palavra navi (נָבִיא) é usada pela primeira vez aqui, e é dada justamente ao homem que acabara de mentir. É um paradoxo teológico: D’us chama de profeta aquele que falhou, porque a vocação divina é maior que o erro humano.
Abimeleque obedece com prontidão, devolve Sara e oferece rebanhos, servos e terras, um gesto de reparação e reverência. E Avraham, em humildade, ora por ele; e o Eterno cura a casa do rei, cuja esterilidade fora o sinal do juízo.

🔥 O Silêncio da Vergonha e o Som da Graça

Este episódio ensina que a fé não é linear. Avraham, que intercedeu por Sodoma, agora é intercedido por um rei estrangeiro. O profeta que orou por justos e ímpios agora precisa orar por aquele a quem quase fez tropeçar.
O Eterno, em Sua misericórdia, não rejeita Avraham, antes o restaura, transformando sua fraqueza em ocasião de graça.

Assim, a narrativa que começou com o engano termina com intercessão e cura. A casa do rei, antes estéril, é abençoada; e Sara, antes tomada, logo será visitada por D’us para conceber o filho da promessa.

Tudo se conecta. O ventre fechado de Abimeleque anuncia o ventre aberto de Sara. Onde a mentira trouxe perigo, a graça prepara o milagre.

🌅 O Riso da Promessa: O Nascimento de Yitschaq

“E visitou o Eterno a Sara, como havia dito; e fez o Eterno a Sara como havia falado.” (Bereshit 21:1)

As palavras soam simples, mas cada sílaba carrega o peso da fidelidade divina.
A promessa feita sob a tenda, quando Sara riu de incredulidade, agora se cumpre, e o riso se transforma em louvor. O texto não diz apenas que D’us lembrou, mas que visitou (pakad  פָּקַד) Sara, verbo que indica intervenção ativa, um ato de graça e poder.

A mulher estéril, que representava o impossível, torna-se mãe. E o impossível, diante de D’us, torna-se natural.

🕊️ O Riso que Redime

“E Sara concebeu e deu a Avraham um filho na sua velhice, ao tempo determinado que D’us lhe havia dito.” (v. 2)

Nada é fora do tempo, nem cedo, nem tarde. O Eterno cumpre Suas promessas no mo’ed, no tempo designado, aquele em que o humano já desistiu e só resta o agir divino.
Avraham tinha cem anos, Sara noventa. O ventre morto revive, e o patriarca ri, não de dúvida, mas de assombro. O nome do menino será Yitschaq (יִצְחָק)  “ele rirá”.
O riso, que antes fora de incredulidade, agora é de alegria. A graça transforma zombaria em adoração.

👶 O Filho da Promessa e o Filho da Carne

Mas logo o riso se mistura à tensão.
No desmame de Yitschaq, Sara percebe Ismael zombando (metzachek, do mesmo verbo “rir”). O mesmo riso que nomeia a bênção agora denuncia o conflito.
Ismael, filho da pressa e do cálculo humano, simboliza o esforço da carne para realizar as promessas de D’us. Yitschaq, filho da fé e da espera, é o fruto da graça.

Sara, discernindo o contraste espiritual, diz a Avraham:
“Lança fora esta serva e seu filho, porque o filho desta serva não herdará com o filho desta, com Yitschaq.” (v. 10)

As palavras parecem duras, mas o Eterno confirma: “Em Yitschaq será chamada a tua descendência.” (v. 12)
Não se trata de desprezo, mas de separação entre o que é humano e o que é divino, entre a promessa nascida da fé e o plano nascido do medo.

🌤️ A Fidelidade de D’us e a Dor da Paternidade

Avraham despede Hagar e Ismael com dor. O texto enfatiza sua ternura, ele levanta-se cedo, entrega pão e água, e os envia ao deserto.
Mas D’us também está ali: ouve o choro do menino e abre os olhos de Hagar para ver o poço.
A bênção prometida a Ismael permanece: ele também será grande, mas fora da aliança.

✨ A Aliança que Ri

O nascimento de Yitschaq sela o clímax da promessa. Tudo o que começou com o chamado de “Lech Lechá” e passou pela dúvida, medo e intercessão, culmina aqui, no riso santo de uma mulher que disse:

“D’us me fez rir; todo aquele que ouvir rirá comigo.” (v. 6)

O riso de Sara é a risada da graça, não a que zomba, mas a que celebra. É o eco da alegria messiânica, quando o impossível se torna vida.
Yitschaq não é apenas um filho; é um sinal profético: o nascimento milagroso que anuncia o nascimento do Messias.

Como Yitschaq, Yeshua também veio de uma promessa impossível, em um tempo determinado, pela visitação divina (pakad).
Ambos nasceram como risos de esperança em meio à esterilidade humana.

🌵 O Deserto e o Choro: A Separação de Hagar e Ismael

“E disse Sara a Avraham: lança fora esta serva e o seu filho; porque o filho desta serva não herdará com o meu filho, com Yitschaq.” (Bereshit 21:10)

As palavras de Sara caem como lâmina, cortando não apenas a convivência doméstica, mas também o coração do patriarca.
Avraham, que esperou um século para ver um filho, agora é forçado a despedir-se do outro, o primogênito, fruto de sua impaciência, mas ainda assim seu filho.
O texto hebraico diz que “a palavra foi muito má aos olhos de Avraham” (ra’á me’od be’eyné Avraham), expressão que revela uma dor profunda, uma ferida moral.

🔥 A Palavra Divina que Confirma o Difícil

Mas o Eterno fala:
“Não te pareça mal por causa do rapaz e da tua serva; tudo o que Sara te disser, ouve a sua voz, porque em Yitschaq será chamada a tua descendência.” (v. 12)

D’us confirma a palavra de Sara, não por favoritismo, mas por propósito.
Há uma distinção espiritual entre promessa e providência. Ismael nasceu da ansiedade humana, da tentativa de apressar a promessa, e, por isso, não pode ocupar o lugar do filho do milagre.
Ambos serão abençoados, mas cada um segundo um plano distinto: Yitschaq carrega a aliança; Ismael carrega a promessa de uma grande nação, fora da aliança.

🌅 A Caminhada ao Deserto

“E levantou-se Avraham de manhã cedo, e tomou pão e um odre de água, e os deu a Hagar, pondo-os sobre o seu ombro; também lhe deu o menino e a despediu.” (v. 14)

A imagem é de partir o coração. O mesmo Avraham que intercedeu por cidades inteiras agora se cala diante da própria separação. Ele não discute, não retruca, apenas obedece, e entrega ao deserto o que ama.
Hagar parte e vagueia pelo deserto de Beer-Sheva. O pão acaba, a água se esgota, e o desespero toma conta. Ela coloca o menino debaixo de um arbusto e se afasta “a distância de um tiro de arco”, porque não quer ver morrer o filho que concebeu com lágrimas e dor.

🕊️ O Deus que Ouve

“E ouviu D’us a voz do menino; e chamou o anjo de D’us a Hagar desde o céu, e disse-lhe: que tens, Hagar? Não temas, porque D’us ouviu a voz do rapaz desde o lugar onde está.” (v. 17)

A compaixão divina rompe o silêncio do deserto.
Não é a voz de Hagar que o texto destaca, mas a do menino, D’us ouviu o rapaz. O nome Ismael (יִשְׁמָעֵאל) significa exatamente isso: “D’us ouve”.
Mesmo fora da casa de Avraham, o Eterno não o abandona. Há graça até no exílio.
O anjo mostra a Hagar um poço de água, não o cria, apenas o revela. O poço já estava ali, oculto pela angústia. A visão de fé é restaurada, e com ela a vida.

🌾 O Deus do Deserto

“E D’us estava com o rapaz, que cresceu e habitou no deserto, e foi flecheiro.” (v. 20)

A Torá encerra o episódio com serenidade. O menino cresce, torna-se guerreiro, habita longe das tendas patriarcais, mas não fora da presença de D’us.
Há uma bênção sobre Ismael, não de eleição, mas de preservação. Ele é lembrança viva de que D’us é fiel até aos frutos do erro, e que a graça divina alcança até aqueles que vivem fora da promessa central.

🌤️ A Teologia da Separação

A separação entre Ismael e Yitschaq é dolorosa, mas necessária. É o símbolo da divisão entre carne e espírito, entre esforço humano e promessa divina.
O apóstolo Shaul (Paulo) interpretará esse episódio como alegoria (Gálatas 4:22–31): Hagar representa o Sinai, a aliança da escravidão; Sara representa a Jerusalém celestial, a aliança da liberdade.
A Torá não apenas narra um drama familiar; ela revela o princípio espiritual de toda redenção: a herança da promessa não vem pelo sangue, mas pela fé.

✨ O Poço e a Voz

No fim, a cena de Hagar e Ismael ecoa a de Avraham e Yitschaq que virá adiante: ambos envolvem um pai, um filho e um possível sacrifício. Mas enquanto Hagar se desespera até ouvir a voz do anjo, Avraham, na próxima narrativa, obedecerá até ouvir a mesma voz.
A fé é lapidada assim: entre o poço e o altar, entre o que se perde e o que é entregue.

🕊️ O Poço e o Juramento: A Aliança de Avraham e Aviméleque

“E aconteceu, naquele mesmo tempo, que Abimeleque, com Ficol, chefe do seu exército, falou a Avraham, dizendo: D’us é contigo em tudo o que fazes.” (Bereshit 21:22)

A notícia correu pela terra: o estrangeiro que viera das regiões de Ur não era um homem comum. Por onde Avraham passava, bênção e temor o acompanhavam. Abimeleque, rei de Gerar, reconhece o favor divino que repousa sobre ele e, movido talvez tanto por reverência quanto por prudência, procura firmar um pacto de paz.
O texto não descreve apenas uma negociação política, mas um ato espiritual: o reconhecimento de que há algo de eterno no que Avraham representa.

🤝 A Sabedoria da Aliança

“Agora, pois, jura-me aqui por D’us que não mentirás a mim, nem a meu filho, nem a meu neto; segundo a bondade que te fiz, farás a mim e à terra em que habitaste.” (v. 23)

Abimeleque, homem de poder, busca o juramento do justo. Ele reconhece que a bênção do patriarca ultrapassa os limites das fronteiras e das espadas. Avraham, contudo, não aceita o pacto de forma cega, ele aproveita o momento para tratar de uma injustiça concreta: o poço que seus servos haviam cavado e que os homens de Abimeleque tomaram à força.
O detalhe do poço não é um mero litígio de terras; é símbolo de vida, herança e direito legítimo. No Oriente antigo, quem cavava um poço reivindicava a posse da terra que o abrigava. O conflito, portanto, revela a tensão entre promessa divina e domínio humano.

💧 O Poço das Sete Testemunhas

“E tomou Avraham sete cordeiras do rebanho e pôs à parte. E Abimeleque disse: que são estas sete cordeiras que puseste à parte? E ele respondeu: para que me sirvam de testemunho de que eu cavei este poço.” (vv. 28–30)

Sete cordeiras, sheva kevasot, tornam-se o selo do juramento. O número sete, na Torá, é cifra de completude, plenitude e santidade. Deste gesto nasce o nome Be’er Sheva (בְּאֵר שֶׁבַע) “Poço do Juramento” ou “Poço das Sete”.
O poço, então, deixa de ser apenas um recurso de sobrevivência para se tornar altar de memória: um lembrete de que a aliança com D’us não exclui a responsabilidade ética entre os homens. Avraham, ao mesmo tempo em que confia nas promessas celestiais, age com justiça na terra.

🌳 A Árvore e o Nome

“E plantou Avraham um tamarisco em Beer-Sheva, e invocou ali o nome do Eterno, D’us eterno.” (v. 33)

Depois do pacto, Avraham planta um tamarisco, uma árvore de raízes profundas, capaz de sobreviver em solos áridos. O gesto é poético e profético. Plantar uma árvore no deserto é um ato de fé: é crer que há futuro onde tudo parece seco.
E ao plantar, Avraham invoca o nome de Adonai El Olam, “O D’us Eterno”. É a primeira vez que essa designação aparece na Torá, e ela expressa uma revelação: o D’us que fez aliança com ele não é apenas o D’us do momento, mas o D’us de todas as eras.

✨ Entre a Terra e o Céu

O episódio encerra um ciclo. Avraham, que caminhou por terras estrangeiras, agora firma sua presença. Ele não é mais apenas o “hebreu errante”, mas o homem do poço, o que deixa marcas, o que planta, o que invoca.
O poço, o juramento e a árvore são três sinais permanentes: justiça, fidelidade e esperança.
E assim, em Beer-Sheva, Avraham sela na terra o reflexo da aliança que já estava firmada no céu.

🔥 O Altar e o Filho: A Akeidat Yitschaq (O Sacrifício de Isaque)

“E aconteceu depois destas coisas que D’us provou a Avraham, e disse-lhe: Avraham! E ele disse: Eis-me aqui.” (Bereshit 22:1)

Depois de pactos e promessas, chega o momento mais solene e terrível da fé. O mesmo D’us que dera o filho do milagre agora exige o impossível: “Toma o teu filho, o teu único, Yitschaq, a quem amas, e oferece-o ali em holocausto sobre um dos montes que te direi.”
Não há introdução, não há explicação, apenas uma ordem. A palavra “nisá” (נִסָּה), “provou”, indica não uma tentação ao mal, mas uma elevação da fé. O teste não é para D’us saber, mas para que Avraham se revele, para que sua confiança deixe de ser conceito e se torne entrega.

🌄 A Madrugada do Silêncio

“E levantou-se Avraham de madrugada…” (v. 3)

Nenhum diálogo, nenhuma resistência. O mesmo homem que questionou D’us por Sodoma agora se cala diante do sacrifício do próprio filho.
A obediência aqui é revestida de dor e reverência. Ele corta a lenha, sela o jumento, chama Yitschaq e parte. Cada gesto é pesado, medido, quase ritual. Três dias de caminhada, tempo suficiente para recuar, mas ele não recua.
No caminho, o filho pergunta: “Meu pai… eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro para o holocausto?” E Avraham responde: “D’us proverá para Si o cordeiro, meu filho.” (v. 7–8)
Essas palavras são mais do que consolo; são profecia. O próprio D’us proverá, e proverá no mesmo monte, séculos depois, um outro Filho, uma outra oferta.

🪵 O Altar e a Obediência

“E edificou Avraham ali o altar, e pôs em ordem a lenha, e amarrou Yitschaq, seu filho, e deitou-o sobre o altar em cima da lenha.” (v. 9)

O texto hebraico usa o verbo va’ya’akod “amarrou”, daí o nome Akeidá (a amarração). É um gesto de submissão total. Yitschaq, já um jovem, poderia resistir; não resiste. Ele se entrega voluntariamente, imagem de fé tanto quanto o pai.
O altar torna-se o cruzamento de duas obediências: a do pai que crê contra o instinto e a do filho que confia contra a razão.

⚡ A Voz do Céu

“Mas o anjo do Eterno o chamou desde o céu, e disse: Avraham, Avraham!… Não estendas a tua mão sobre o rapaz, e não lhe faças nada; porque agora sei que temes a D’us, e não Me negaste o teu filho, o teu único.” (v. 11–12)

O silêncio é rompido pela voz que salva. A prova atinge seu ápice e termina com revelação. Avraham levanta os olhos e vê um carneiro preso pelos chifres, o substituto provido por D’us.
Aqui nasce o nome Adonai Yirêh (יְהוָה יִרְאֶה) “O Senhor proverá”. A fé, afinal, não consiste em entender, mas em caminhar até o altar confiando que D’us proverá no momento certo.

🔥 O Juramento Divino

“Por mim mesmo jurei, diz o Eterno… porque fizeste esta coisa, e não Me negaste o teu filho, o teu único, abençoar-te-ei grandemente…” (v. 16–17)

Pela primeira e única vez, D’us jura por Si mesmo. O sacrifício não consumado de Yitschaq sela de vez a aliança. A obediência de Avraham é a base sobre a qual a promessa se torna inabalável.
A descendência prometida será numerosa como as estrelas e vitoriosa sobre seus inimigos, não porque Avraham venceu homens, mas porque venceu a si mesmo.

🌅 Entre o Monte e o Cordeiro

A narrativa termina com serenidade. Pai e filho descem juntos. A fé sobreviveu ao fogo.
O monte Moriá permanece como símbolo eterno da tensão entre amor e obediência, entre entrega e esperança.
Séculos depois, outro Pai e outro Filho repetiriam o drama, desta vez sem o carneiro preso no mato, porque o Cordeiro verdadeiro seria o próprio Filho.

✨ A Teologia do Fio da Faca

A Akeidá não é apenas um relato de obediência extrema; é o retrato do amor que confia até o limite da razão. Avraham descobriu no fio da faca a profundidade da fé: que D’us não quer sacrifícios humanos, mas corações rendidos.
O altar em Moriá nos ensina que toda fé verdadeira passa pela lâmina da entrega, e que toda entrega verdadeira termina em ressurreição.

🌿 As Boas-Novas de Aram: O Nascimento de Rivká

“E sucedeu, depois destas coisas, que anunciaram a Avraham, dizendo: Eis que também Milcá deu filhos a Naor, teu irmão.” (Bereshit 22:20)

Logo após a prova mais dura da fé de Avraham, a Torá muda o tom, do fogo do altar para a ternura da família. É como se, ao final da Akeidá, o Eterno respondesse à entrega de Avraham com uma nova promessa, não por palavras, mas por nascimento.
O texto começa dizendo “depois destas coisas”, expressão que liga diretamente a provação ao consolo. Depois do sacrifício que quase custou o filho da promessa, vem o anúncio do nascimento daquela que se tornará a esposa do filho.

📜 A Genealogia de Naor

Milcá, esposa de Naor (irmão de Avraham), dá à luz oito filhos: Uz, Buz, Quemuel, Quésede, Hazo, Pildas, Jidlafe e Betuel. Este último será pai de Rivká (Rebeca).
Há ainda a menção a Reumá, concubina de Naor, mãe de quatro outros filhos, Tebá, Gaam, Taás e Maacá. O detalhe é aparentemente genealógico, mas tem valor teológico: a promessa feita a Avraham começa a se desenhar também entre seus parentes distantes, preparando o cenário da próxima geração.

🌾 Providência em Forma de Nascimento

O nascimento de Rivká não é apenas um dado familiar; é o elo divino entre a fé de Avraham e a continuidade da promessa.
Enquanto o patriarca prova sua fé em Moriá, D’us já está levantando, em Aram, a mulher que perpetuará a aliança.
Assim, a Torá mostra que o Eterno trabalha em paralelos providenciais: enquanto um sacrifício é evitado no monte, uma promessa é tecida no ventre.

O texto encerra o capítulo com simplicidade, mas com um sentido profundo: mesmo quando Avraham descia do monte sem saber o que viria, D’us já preparava o futuro.
Rivká, aquela que se tornará esposa de Ytschaq, é sinal de que a fé que sobreviveu ao altar será recompensada com descendência viva.

💫 Entre a Provação e a Promessa

A genealogia de Naor encerra a parashat Vayerá com uma nota de esperança.
O mesmo D’us que prova é o D’us que provê; o mesmo que exige entrega é o que garante continuidade.
Avraham entregou Yitschaq no coração; D’us lhe devolveu não apenas o filho, mas o futuro.
Rivká é, portanto, o prenúncio de uma nova geração da aliança, a resposta silenciosa de D’us à
 fidelidade de um homem que ousou crer até o fim.


Haftará

🌠 A Haftará de Vayerá: O Milagre da Vida em Shunem
(2 Reis 4:1–37)

Assim como a parashá Vayerá apresenta o nascimento miraculoso de Yitschaq, a Haftará traz outro nascimento impossível: o filho prometido à mulher sunamita por meio do profeta Elishá (Eliseu). Ambas as narrativas ecoam o mesmo tema central, a fidelidade de D’us em transformar o impossível em realidade viva.

🌿 A Mulher que Reconheceu o Santo de D’us

O texto abre com a figura de uma mulher notável da cidade de Shunem. Ela não pede nada, não busca bênção nem milagre. Apenas percebe a santidade de Elishá e o acolhe com generosidade, oferecendo-lhe pão e hospedagem.
Sua atitude reflete o mesmo espírito de hospitalidade que marcou Avraham e Sara em Mamré, abrir a tenda, servir, acolher o divino disfarçado de humano.
Como Avraham, ela também prepara um lugar para a presença de D’us: “Façamos-lhe um pequeno quarto sobre o muro... e ali ficará quando vier.” (v. 10)
A tenda de Avraham se torna o quarto da sunamita; ambos são espaços de comunhão, onde o céu visita a terra.

🔥 A Promessa Inesperada

Elishá, grato pela bondade da mulher, pergunta o que pode fazer por ela. Ela responde: “Eu habito no meio do meu povo.”, ou seja, não preciso de nada.
Mas o servo Guehazi revela: “Ela não tem filho, e seu marido é velho.”
Então o profeta declara: “Por este tempo, no ano que vem, abraçarás um filho.” (v. 16)
As palavras são quase idênticas às ditas a Sara por um dos anjos: “Por este tempo, voltarei a ti, e Sara terá um filho.” (Bereshit 18:10)
O mesmo D’us que abriu o ventre de Sara agora repete o milagre em Shunem, séculos depois, porque o poder divino não envelhece.

💔 A Provação da Promessa

Mas, assim como em Bereshit a alegria da promessa é acompanhada por provações, aqui também a vida é provada pela morte.
O menino cresce e, de repente, adoece no campo, “A minha cabeça! A minha cabeça!”, e morre nos braços da mãe.
O milagre que havia trazido alegria agora mergulha a casa em desespero.
Porém, a mulher sunamita não se rende. Ela sela a fé com ação: monta o jumento e corre até o profeta, dizendo a quem tenta detê-la: “Tudo vai bem.” (v. 23)
Essas são as palavras da fé que recusa o desespero, shalom, mesmo quando há morte no quarto.

🕊️ A Ressurreição e o Toque Divino

Elishá vai até a casa. Sobe ao quarto, fecha a porta, ora ao Eterno e deita-se sobre o menino, olhos sobre olhos, boca sobre boca, mãos sobre mãos.
É um gesto de identificação total, como se o profeta transferisse vida por meio do contato. O corpo do menino aquece, espirra sete vezes e abre os olhos.
O número sete, símbolo de plenitude, marca a restauração completa. A vida retorna onde antes havia silêncio.

🌾 O D’us que Reverte a Morte

A Haftará encerra com a mesma nota de esperança da parashá: o D’us que promete é o D’us que ressuscita.
Tanto em Avraham quanto na sunamita, a fé é testada para que o poder da vida se manifeste sobre o desespero.
Em ambos os casos, o nascimento vem de um ventre impossível; a vida, de um corpo sem esperança.

✨ Eco Messiânico

A tradição judaica e messiânica vê nesses relatos sinais proféticos do poder redentor do Messias.
Assim como Elishá revive o filho da sunamita, Yeshua trará de volta à vida os mortos, não apenas fisicamente, mas espiritualmente.
O quarto em Shunem antecipa o túmulo vazio; o profeta sobre o menino prefigura o Salvador que se deita sobre a humanidade para soprar-lhe vida eterna.

⚖️ Entre o Berço e o Altar

A Haftará de Vayerá fecha o ciclo da parashá: a fé que hospeda o divino, o ventre que gera o impossível, e a vida que vence a morte.
O mesmo D’us que visitou a tenda de Avraham agora habita o quarto da sunamita.
E, em ambos, o milagre nasce do mesmo lugar: da fé silenciosa que abre espaço para o Eterno entrar.


Brit Chadashá

Brit Chadashá Vayerá: A Fé que Sobe ao Monte
(Tiago 2:21–24; João 8:56; Hebreus 11:17–19)

Assim como a parashá Vayerá culmina na entrega de Yitschaq sobre o altar, a Brit Chadashá ilumina esse mesmo episódio como o ápice da fé de Avraham, não uma fé teórica, mas uma fé que respira, caminha e obedece. Aqui, a promessa e a obediência se encontram no ponto mais alto do monte, onde o amor é provado pelo sacrifício.

🔥 A Fé que Age e se Cumpre

Tiago recorda o gesto de Avraham ao erguer o cutelo sobre o filho da promessa e declara: “A fé cooperou com as suas obras, e pelas obras a fé foi aperfeiçoada.” (Tg 2:22)
O texto não fala de mérito humano, mas de uma fé madura, capaz de se tornar ação. Crer, para Avraham, era agir em conformidade com o caráter de D’us, mesmo quando a razão gritava o contrário. A fé que não se move morre. Mas a fé que obedece, mesmo sem entender, se torna viva e poderosa
.

🌄 A Alegria Profética de Avraham

Em João 8:56, Yeshua revela algo misterioso: “Avraham, vosso pai, exultou por ver o meu dia; e viu-o, e alegrou-se.”
Essas palavras unem o monte Moriá ao Calvário. Quando Avraham levantou os olhos e viu o carneiro preso pelos chifres, ele contemplou, em figura, o verdadeiro Cordeiro que D’us proveria.
Ali, no mesmo monte onde o filho seria entregue, o Pai celestial entregaria o Seu próprio Filho. O sacrifício de Yitschaq se tornou sombra e prenúncio da cruz, e a alegria de Avraham foi ver o cumprimento da promessa: o Messias, a vida que triunfa sobre a morte.

💔 A Provação da Promessa

Hebreus 11:17–19 nos recorda que Avraham ofereceu Yitschaq crendo que D’us podia ressuscitá-lo dentre os mortos. Essa é a fé que não se limita ao presente, mas confia no poder que transcende a morte.
Avraham subiu o monte disposto a devolver ao D’us da vida aquilo que dele recebera. Sua fé foi tamanha que ele viu, pela esperança, a ressurreição antes mesmo de existir qualquer precedente.

🕊️ O Eco Messiânico: Do Altar ao Gólgota

O que Avraham viveu em figura, Yeshua cumpriu em realidade.
O filho amado, carregando a madeira, sobe o monte, não mais para ser poupado, mas para ser entregue. O cordeiro preso pelos chifres é substituído pelo verdadeiro Cordeiro de D’us, cujo sacrifício inaugura uma nova aliança, escrita não em pedras, mas em corações.
Assim, a fé de Avraham encontra seu clímax na cruz, onde a promessa se torna salvação.

Entre a Provação e a Promessa

A Brit Chadashá de Vayerá nos recorda que a fé autêntica é feita de confiança e entrega. Avraham não apenas acreditou nas palavras de D’us, ele viveu como quem crê.
E nós, herdeiros dessa mesma fé, somos chamados a subir nossos próprios montes: a abrir mão do que amamos para descobrir que, no topo, o Eterno sempre provê.

📜 Conclusão: O Amigo de D’us

Tiago encerra dizendo: “E cumpriu-se a Escritura que diz: Avraham creu em D’us, e isso lhe foi imputado como justiça, e foi chamado amigo de D’us.” (Tg 2:23)
Ser “amigo de D’us” é crer quando tudo parece perdido; é obedecer quando o caminho sobe e o altar espera.
A fé de Avraham não apenas viu o Messias de longe, ela o antecipou em gesto, em entrega e em amor.
E por isso, cada vez que alguém crê e obedece, o eco do monte Moriá ressoa novamente: “No monte do Senhor se proverá.”


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Escrito por: Mateus Corrêa


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